segunda-feira, 23 de junho de 2008

Alguns QUEM SOU EU




Por Edson


Numa população de bilhões de pessoas, fui agraciado com uma doença psiquiátrica que acomete 1% da população mundial. Soa até como um palavrão, uma doença crônica: esquizofrenia, do grego skizo, divisão; e phenos, espírito. " A doença do espírito dividido" faz com que sua vítima seja assaltada por delírios e alucinações.
Vozes e seres imaginários solapam a percepção da realidade, falsas idéias de perseguição e possessão tornam a vida um inferno.
Trabalho há cinco anos na mesma empresa; este é o meu lado obscuro: ninguém sabe que eu tenho esta doença. Durante o exame admissional, omiti este fato e, graças ao medicamento de uso diário e contínuo, nunca tive qualquer afastamento pelo motivo da minha doença.

A mim,a poesia vem como um bálsamo de tranqüilidade, gosto de escrever e ler poesias. Tenho duas coletâneas publicadas, resultado de oficinas das quais participei. A poesia, na minha vida, transita entre o real e o irreal, a sanidade e a loucura, sempre entre dois pólos que aglutinam tudo em mim, e a escrita despeja os versos.

Este poema sintetiza bem o que sinto em relação à poesia.

" Não é fácil assimilar
A condição efêmera do
Ser humano, transcrever
Esta humanidade
Calos e percalços
Fantasiar por vezes este
Chão de realidade
Não é fácil."


Por Concha

No Tempo da Travessia


“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas que já têm a forma de nosso corpo e esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares.
É o tempo da travessia e, se não ousamos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.”

Fernando Pessoa



Desde pequena, amo os livros. Quando ia à casa de alguém que tinha livros, eu me grudava a um deles e me esquecia de brincar. Brincadeira que eu gostava, além de brincar de casinha e de professora, era de fazer teatro com meus irmãos. Eu inventava a história e “dirigia” os atores, que eram bons de improviso e uns autênticos palhaços. Ríamos muito cada vez que repetíamos e íamos aprimorando as cenas.
.
Conforme cresci, a leitura foi se tornando uma maneira mais profunda de conhecer o outro e o mundo, e uma necessidade vital. A literatura transformava o mundo, que me parecia muitas vezes sombrio e irreal, num caleidoscópio de sentidos e emoções, de cores e profundidades. Ela dava um sentido muito mais amplo à vida.

No começo, escrever foi uma válvula de escape e uma forma de auto-conhecimento. Mas, a meu ver, escrever “literatura” era um ideal elevado demais, quase sagrado, para uma pobre mortal como eu. De fato, pouco guardei de tudo que escrevi. Com o passar dos anos, o trabalho, a autocrítica excessiva, as atenções à família que crescia e as distrações me distanciaram da escrita. A família, os amigos, os relacionamentos e o trabalho sempre foram as prioridades.(O Pedro diria que me faltou disciplina, e eu teria que concordar). Escrevi uns poucos contos curtos e uns poemas.

Há muitos anos, passei a ter um sonho recorrente: escuto um choro muito fraco, ou não escuto nada, e de repente me lembro de que tenho um bebê. Há vários dias que eu o esqueci em seu berço. Aterrorizada, corro para ver se ainda está vivo. Encontro-o esquálido, com os olhinhos fundos, mas ainda vivo. Abraço-o emocionada e o amamento. Sinto uma dor cortante por tê-lo deixado abandonado e desnutrido. Não compreendo como consegui, pois adoro senti-lo junto a mim, isso me dá um conforto imenso.

De anos em anos, o sonho volta, e é sempre um tormento. Já me perguntei muito sobre esse bebê e sei que ele significa uma parte essencial, até orgânica de mim mesma. Hoje sei que essa parte que deixei de cuidar e nutrir é minha natureza artística que às vezes emerge pedindo um canal de auto-expressão, para não ser largada à míngua, morrendo...

Também tive câncer. Ele me pegou pela base da língua, órgão da alimentação e da fala. Sei que não fui pega ao acaso, havia coisas demais entaladas em minha garganta, coisas que nunca conseguira por goela abaixo. Nem foi por acaso que o câncer atingiu minha forma principal de expressão e meu instrumento essencial de trabalho (sou professora de inglês).Ele afetou gravemente minha voz, a percepção dos sabores, a produção de saliva e me impediu de voltar a trabalhar em escola. Não morri quatro vezes, como aconteceu com o Roberto, mas fui sumindo, perdendo peso dia a dia, sem saber se aquilo um dia iria parar. Faz um ano que estou curada. No caso de câncer, é difícil saber até quando. Felizmente, meu organismo resistiu bravamente ao tratamento, que é ainda mais destrutivo que a própria doença.

Agora é tempo de descompressão e de transformação. Sinto-me jovem e saudável e gosto ainda mais de ligar-me à vida de uma maneira simples: cuidando de plantas e de pessoas, ficando atenta às coisas e à natureza, sentindo prazer com o vento na cara ou com o calor do sol na pele. O mundo sensorial me encanta; uma barulheira de pássaros me emociona. Viver é estar atenta. Algumas coisas antes muito duras e dolorosas já não contam, porque não depende de mim mudá-las. Assim eu decidi.

Mais que tudo, sei que preciso escrever. Gostaria de conseguir escrever como quem brinca, aceitando a falta de jeito e os defeitos de minha escrita. Seria divertido e terapêutico. Também queria saber escrever como quem vai desenrolando um novelo e revelando aos pouquinhos a natureza milagrosa da vida. Neste caso, escrever seria como rezar, como falar com Deus.

É por isso que estou aqui: buscando estímulo, inspiração e a sensação de pertencer. Sou tão grata por ter encontrado este grupo e por já me sentir parte dele! Aqui e com vocês, eu vou cuidar de meu bebê.

Concha Celestino
21/05/2008



NOVO SONHO DE CONCHA

Shelly


Sonhei nesta manhã que tinha uma bebezinha linda e gorducha chamada Shelly. Não sei se era minha filha, só sei que era eu quem cuidava dela. Eu dançava com a Shelly no colo numa grande sala, e ela estava adorando a brincadeira.

O nome dela tinha sido escolhido por mim e por meus irmãos quando ainda éramos crianças. É que a Shelly era também nossa boneca de brinquedo.


Sábado, 7/6/2008.




TEXTOS SOBRE FAMÍLIA



Por José

VÓ IDA
Veio ao mundo no dia de todos os santos: 1°/11/1901 e, santa com certeza, não era. Casou-se cedo, aos 16 anos, com um português da Província do Minho. Não foi um casamento por amor, mas uma violência imposta pela tradicional ¨famiglia¨italiana. Um belo dia houve algo tenebroso e meu avô, fulo da vida, juntou suas coisas e se mandou para as bandas de Rio Preto. Ele se foi, a ela coube a responsabilidade de criar e educar três meninas. Ao contrariar as regras de subserviência da época, vó Ida sofreu injúrias e difamações
Minha personagem era peculiar sob muitos aspectos: Cozinhava como uma profissional. Não usava receitas e improvisava ingredientes com sabedoria. O melhor desempenho foi como quituteira. Produziu os melhores doces que a pequena Monte Santo conheceu. A geléia de mocotó, por exemplo, dava um trabalho de danado para fazer; era famosa e tinha comprador certo. Em nossa casa era o doce preferido. A goiabada, quando estava próxima do ponto, formava bolhas e espirrava. Se caísse na pele era queimadura na certa.
Sentada junto ao fogão a lenha, enquanto esperava o ponto certo do doce, vó Ida contava historinhas de terror para seus assustados netinhos. Mula sem cabeça, lobisomem e fantasmas de cemitério eram os personagens infantis de sua preferência. Talvez por não ter conhecido contos de fadas, encontrara nessas figuras a forma carinhosa de impor limites aos pirralhos. Depois que ela despejava o doce no tabuleiro ou nas latas de cera reaproveitadas, a briga era para saber quem iria rapar o tacho.
Aprendeu a fazer crochê sozinha. Teceu colchas, toalhas, tapetes e muita roupinha de bebê para os bisnetos
Fumava (pitava) em cachimbo de barro, bem rústico. Usava fumo de corda extra-forte.O cheiro da fumaça exalada era de doer.O cachimbo era seu ponto de equilíbrio, sua psicanálise. Também mascava fumo, da mesma qualidade usada no cachimbo.
Vez ou outra apreciava, sem moderação, uma branquinha, quem sabe para afogar as mágoas. Quando estava mamada ficava agressiva e inconveniente. Sempre que a ressaca a deixava indisposta dizia: hoje tô um caco.
Nos tempos de vacas magras, aliás esqueléticas, ajudava no apertado orçamento doméstico. A renda, ainda que pequena, vinha de lavar e passar roupas para terceiros e dos doces que fazia. Durante muito tempo passou roupa com ferro de brasa até altas horas. Era incansável.
O mineiro, além do sotaque gostoso e musicado, costuma engolir o final das palavras. É econômico até no falar. Vó Ida tinha uma comadre de nome Maria Aparecida e quando se encontravam o tratamento era: cumad’Ida e cumad’Paricida.
Nunca soube que minha avó materna tivera uma casa para morar só sua. A maior parte da vida viveu com minha família. No final dos anos 50 a situação nas Gerais ficou ainda mais difícil e meu pai resolveu mudar-se para São Paulo, tendo vó Ida como agregrada. A adaptação à cidade grande, apesar de complicada, não lhe tirou o ânimo
.Particularidades de vó Ida: Era analfabeta, mas possuía uma memória privilegiada. Conseguira decorar os algarismos e isso lhe facilitava andar de ônibus ou de trem para qualquer parte. Nunca usou óculos em toda sua vida. Enxergava tão bem, como uma águia em vôo à procura da presa. Gostava de jogar no bicho. Logo de manhã indagava o que tínhamos sonhado e assim fazer a aposta com mais segurança. Nas vezes em que ficou doente curou-se com remédio caseiro e a primeira consulta médica deu-se aos 76 anos de idade. Era econômica nas palavras, mas generosa nos gestos carinhosos. Sempre que alguém precisava de serviços de enfermagem, lá estava ela à disposição.
Morreu aos 80 anos, em março de l982, pouco depois do falecimento da inesquecível Elis Regina. Falar de vó Ida é como desenrolar lentamente um novelo de linha. A cada lembrança bate no peito uma saudade danada.



TEXTOS SOBRE MEMÓRIA DE SABORES



Por Bruna Nehring



“TOMATES SENTADOS”

Ohiyo é uma japonesa dos seus cinquenta anos, cuja banca na feira frequento há muito tempo. Ela traz sempre pouca quantidade de cada tipo de verduras, só verduras, mas tudo é fresquinho, limpo e bem arrumado. Como bonus entre as várias tonalidades de verde, seu sorriso acolhedor. Quando me vê, sua primeira pergunta é sempre a mesma: “hoje vai querer tomates sentados? guardei alguns para você”. Tudo isto desde quando notou que – nem sempre mas bastante frequentemente - eu selecionava os tomates, colocando-os, um de cada vez, na palma bem esticada de minha mão. Até o dia que ela não aguentou e perguntou a razão. Expliquei: “quando compro tomates para fazê-los recheados eles precisam ser maduros mas firmes e, o mais importante, é que eles devem poder ficar bem sentados.”
Ela perdeu o sorriso e arregalou os olhos: “Como é?”
Descrevi: “quando os coloco na assadeira, eles devem sentar bem, estar bem equilibrados, se não o recheio cai durante o cozimento. Por isto eles devem ser redondos e ligeiramente achatados. Aqueles ovais nunca ficam em pé. Só servem para salada ou para molhos”.
Agora ela sempre tem uma meia dúzia que guarda para mim, e nunca fica chateada se, justo naquele dia eu não preciso de tomate nenhum. Mas quase sempre os compro, mesmo se os usarei para outros fins. E ela sempre agradece sorrindo, sem desconfiar.
Voltando em casa com minha cestinha cheia, fico calculando se fazer os tomates recheados só para mim ou convidar alguém. Se fizer só para mim (costumo comprar 4 ou 6 de cada vez) penso feliz que não precisarei fazer almoço por dois dias, pois este prato, mesmo frio, sempre aguça minha gulodice; se quero convidar alguém, preciso escolher quem: ou que já conheça, e aprecie; ou que possa ser apresentado com sucesso a este prato que é único em todos os sentidos. Único por dispensar carnes, peixes e outras proteínas, ( mas, frio serve maravilhosamente bem no verão para acompanhar rosbifes); e único por não comparecer nos menus de nenhum restaurante, de nenhum tipo, cantina ou cinco estrelas, “trattoria”, “buffet” ou “peso”.
Para a crônica: Após tê-la esquecido durante muito tempo, desenterrei esta receita da minha memória, por ocasião do festejo de um aniversário muito especial: o meu é mais ou menos duas semanas antes do de minha filha e em 1988, vinte anos atrás, quando ela completaria 27 anos eu estaria com exatamente o dobro da idade dela, consequentemente ela teria a metade da minha. Achei que seria um aniversário único na vida das duas. Os “tomates sentados” foram muito festejados no meio de saladas estranhas como a de champignon crus com maionese de “mangochutney”, a de laranjas fatiadas com azeitonas pretas, e a de folhas verdes temperadas com molho quente de bacon frito crocante.
Por muito tempo havia acreditado que fosse uma receita de família, muito exclusiva, mas nas minhas andanças pelo mundo andei descobrindo a presença dos “tomates sentados” em praticamente todos os países mediterrâneos, principalmente nas aldeias a beira mar, sempre como comida essencialmente caseira, mas com pequenas substituições de temperos: na Italia o orégano, na Grécia açafrão, na Turquia e Libano o zátar, no Marrocos o endro, na Espanha raspa de limão, na França o “pistou” que nada mais é que manjericão, sendo porém que nesta receita ele é usado seco. Até em La Valletta, na ilha de Malta, que por quase duzentos anos amargou a influência da insossa cozinha inglesa, descobri uma bodega em que os proprietários espanhóis tinham o prato como a especialidade da casa.
“Tomates sentados” é o nome que surgiu de minhas conversas com Ohiyo, mas na minha família sempre foi “Pomodori ripieni” ou seja, pura e simplesmente “Tomates Recheados”. Quando se especifica o “do que” é que as pessoas se assustam, pois ninguém acredita que o arroz CRU possa cozinhar dentro do tomate, no forno.
Eu sempre cozinhei tudo assim, “a olho”, sem receitas escritas; para poder anotá-la para vocês, tive que fazê-lo passo a passo, na cozinha, enquanto a executei; portanto ontem tive que ir à feira comprar tomates. Ohiyo me olhou surpresa, e com razão: costumo ir às Sextas na feira da Al. Lorena, e ontem, Quarta, fui na da Rua Fernão Cardim.
“Oh, hoje não trouxe seus tomates sentados!”
Sorrio: “Não faz mal, Ohiyo, eu mesma escolho. Mas você pode escolher para mim a melhor rúcula precoce e os espinafres mais tenros”.
Ainda, bastante triste, ela esclareceu: “Se eu soubesse...”; surpreendentemente, acrescentou: “O que eu não faço para uma freguesa como você?”
Não sei o que deu em mim, mas me ouvi retrucar: “Você faz tudo por mim, mas sempre recusou vender-me as ramas do nabo, sem o nabo”.
Ela abaixou a cabeça com olhos envergonhados: “Desculpe, já expliquei – ela insistiu com mais um desculpe - se eu corto as folhas ninguém vai comprar o nabo nu.”
Quase caí na gargalhada: eu não sabia que ela tivesse um sentido de humor, como tem, aqui, a nossa Violeta.
Ohiyo sabe que nabos sem ramas amargam em pouco tempo; que seis nabos são muita coisa mesmo para uma família grande, mas não tem idéia que as ramas de seis nabos dão um prato fabuloso para no máximo 2 pessoas gulosas como eu.
Bem, mas isto já é outra receita.

domingo, 22 de junho de 2008

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Mensagem de Sandra Schamas aos escreviventes


Somos da turma do fundão. Bagunceiros, indisciplinados , irreverentes, às vezes. Nossa mediadora cultural, Karen, tem uma postura democrática, nos deixa extrapolar. Nós extrapolamos.

Conseguimos uma unidade na diversidade. Falei bonito, mas é a pura verdade. Foi em certa aula na cozinha que o fenômeno ocorreu. Primeiro, descobrimos que a classe inteira é do fundão. Criamos o fundão redondo. Maravilha.

Em seguida, foi um tal de revelar cicatrizes, internas e externas, visíveis e invisíveis, que eu acho que um pacto de sangue, sem querer, aconteceu. Agora não tem mais jeito, estamos unidos para sempre. Mesmo que não nos encontremos mais, cada um estará presente na vida do outro, unidos pelas “Memórias”. Seremos eternos escreviventes.